Opiniões, críticas, reflexões, comentários e saudações serão extremamente, e sempre, bem-vindos

domingo, 10 de outubro de 2010

Outro olhar

As falas borram o entendimento, e já não há razão para escutar. Mesmo assim faz um esforço e continua de cabeça baixa, balançando-a lentamente, ouvindo. Aquelas línguas são perversas , e desferem-lhe golpes cruéis: família, amigos, paixões, um a um arrancados de sua alma. As lágrimas começam então a brotar dos seus olhos, mas as segura, chora por dentro.

Enquanto os outros falam, vêm-lhe à cabeça alguns pensamentos: vagos, mas presentes. Desejava não estar lá, ou melhor, nunca ter estado lá, ou melhor, que lá nem mesmo existice, mas agora colhia o que plantara, e sabia não poder colher uvas de uma macieira.

Um constrangedor silêncio brotou, mas foi logo abatido por um ou dois soluços. Levantou a cabeça e mirou diretamente nos olhos que estavam diferentes: fundos e opacos, escuros e desfocados. Era outra pessoa- concluiu.

As falas recomeçaram. Passou então a recordar aqueles tempos: o dia em que as palavras se cruzaram; o dia em que os olhos se cruzaram (por coincidência, os mesmos); o dia em que as mãos se cruzaram. Ocasiões belas e singulares. Distantes.

Cobriu o rosto com as mãos. Mas...ora, uma supresa! Estava sorindo, o sujeito. Olharam-no com assombro, e o que era desagradável para um, tornou-se ainda mais desagradável para o outro. Agora gargalhava.

O homem que teve seus sonhos retalhados, que acreditava-se morto, agora ria como uma criança ao provar, pela primeira vez, a água do mar. Pediu licença e, mesmo sem recebê-la, retirou-se do diálogo. Sentia seu coração bater em um ritmo frenético e alucinante. Saiu na avenida, olhou para o céu e vislumbrou, com olhos enormes, um emaranhado de estrelas dispostas aleatoriamente. Enquanto lambia-lhe os ouvidos a mesma brisa geladinha, ajoelhou-se. Até mesmo a lua parecia iluminá-lo de forma mais gentil.

Levantou-se e partiu



Pedro Lança Gomes

sábado, 9 de outubro de 2010

Velha História

Depois de atravessar muitos caminhos
Um homem chegou a uma estrada clara e extensa
Cheia de calma e luz.
O homem caminhou pela estrada afora
Ouvindo a voz dos pássaros e recebendo a luz forte do sol
Com o peito cheio de cantos e a boca farta de risos.
O homem caminhou dias e dias pela estrada longa
Que se perdia na planície uniforme.
Caminhou dias e dias…
Os únicos pássaros voaram
Só o sol ficava
O sol forte que lhe queimava a fronte pálida.
Depois de muito tempo ele se lembrou de procurar uma fonte
Mas o sol tinha secado todas as fontes.
Ele perscrutou o horizonte
E viu que a estrada ia além, muito além de todas as coisas.
Ele perscrutou o céu
E não viu nenhuma nuvem.

E o homem se lembrou dos outros caminhos.
Eram difíceis, mas a água cantava em todas as fontes
Eram íngremes, mas as flores embalsamavam o ar puro
Os pés sangravam na pedra, mas a árvore amiga velava o sono.
Lá havia tempestade e havia bonança
Havia sombra e havia luz.

O homem olhou por um momento a estrada clara e deserta
Olhou longamente para dentro de si
E voltou.

Rio de Janeiro, 1933



Vinícius de Moraes

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Segunda-feira

 
Quantas pessoas sorriem para você todos os dias? Quantas pessoas alegres você conhece? Quanto tempo faz que não escuta uma boa gargalhada?
- "Quantos dedos tem aqui?"
   É cada vez mais raro um sorriso sincero. A gente ri para agradar, ri por educação, ri para manipular, e, em alguns casos, ri para não chorar.
-"Dói alguma parte?"
   Às vezes uma língua afiada dói muito mais do que um corte na pele, e muitas vezes não há linha ou agulha que ajude a cicatrizar a alma.
-"Coitadinho!"
   Vivemos em um mundo cinza, nas cinzas do que já foi um arco-íris. De vez em quando achamos uma corzinha e aproveitamos ela ao máximo, até que se esgote, sem nunca nos preocuparmos em restaurá-la.
-"Não queria estar no seu lugar..."
   Você está feliz? Se estiver, é às custas de vários, pois para cada feliz no mundo temos muito mais infelizes. Para você ganhar, alguém tem que perder.
-"Ganhei o meu dia!"
   Você já fez alguém feliz? Ou viu alguém cair para outro se levantar?
-"Que tombo!"
   No meio da avenida, no meio da noite, sob um céu estupidamente estrelado, me tornei o mais estúpido: caí, ridiculamente, leve como uma feijoada.
   Fiz a alegria de uma pequena multidão. Senti um frio que viajou da planta dos meus pés até a ponta do meu nariz, causando um leve formigamento nas bochechas.
   Quantas risadas, quantos sorrisos! É certo que fiquei desconcertado, mas sem muita demora fui contagiado por aquela explosão magnífica de alegria momentânea. Nunca me senti tão bem em toda minha vida. Deveria cair mais vezes.
   Ganhei o meu dia.
      


Pedro Lança Gomes


terça-feira, 5 de outubro de 2010

Tributo à língua portuguesa: Mais que palavras

             
A língua portuguesa é mesmo fascinante

   A língua portuguesa não é uma, mas várias formas de expressão da comunicação. Ela nos permite flexioná-la de forma a atender cada situação que nos é exigida: se queremos saudar um amigo íntimo, usamos gírias; se queremos saudar um prefeito, formalidades. Se queremos comparar um carro com outro, usamos termos em seus sentidos literais, mas, se a comparação for entre uma pedra e o oceano, não há outra saída senão usar metáforas.
   O diferencial do português é o universo de ferramentas e recursos que ele nos oferece. Isso permite a essa língua uma infinidade de construções textuais. O sentido de uma frase pode ser alterado tanto retirando-se palavras dela quanto adicionando-se uma vírgula. Um leitor desatento pode confundir completamente o que um artigo quer lhe dizer e até mesmo distorcer o sentido real do texto em outros. Isso nos mostra a importância de que conheçamos melhor a nossa língua, que, por ser tão rica e fabulosa, também pode ser usada como uma arma social por pessoas que desejam nos manipular.
   Outro aspecto curioso desse idioma é o efeito que a regionalidade tem sobre ele. Não precisamos ir muito longe para percebê-la. Dentro de uma mesma região podem existir inúmeros sotaques e variadas formas de se chamar um mesmo objeto: no Rio de Janeiro, uma borracha é uma borracha; já em Belo horizonte, pode ser um "trem".
    Mas o que mais fascina, é como essa língua dá margem a construções artísticas, tanto em sua forma escrita quanto falada: é impressionante como um jogo de pontuação dá ritmo a um poema - quem quiser que tente acompanhar a alucinante trilha do trem de ferro de Manuel Bandeira - , e mais impressionante ainda, como um sotaque carioca cai bem em um samba - mesmo sendo de uma nota só.
    A língua portuguesa é, sem dúvida, fascinante.



Pedro Lança Gomes

sábado, 2 de outubro de 2010

Razão da existência

O mundo ao nosso redor resguarda, menos para os olhos de uma criança, os seus mais profundos segredos e revelações.
No livro "A festa de Maria" do maravilhoso escritor Rubem Alves, lê-se em um trecho: "Lá vão pelo caminho a mãe e a criança, quem vai sendo arrastada pelo braço - segurar pelo braço é mais eficiente que segurar pela mão. Vão os dois pelo mesmo caminho, mas não vão pelo mesmo caminho. Blake* dizia que a árvore que o tolo vê não é a mesma árvore que o sábio vê. Pois eu digo que o caminho por onde anda a mãe não é o mesmo caminho por que anda a criança. Os olhos da criança vão como borboletas, pulando de coisa em coisa, para cima, para baixo, para os lados, é uma casca de cigarra num tronco quer parar para pegar, a mãe lhe dá um puxão, a criança continua, logo adiante vê o curiosíssimo espetáculo de dois cachorros num estranho brinquedo, um cavalgando o outro, quer que a mãe também veja, com certeza ela vai achar divertido, mas ela, ao invés de rir, fica brava e dá um puxão mais forte, aí a criança vê uma mosca azul flutuando inexplicavelmente no ar, que coisa mais estranha, que cor mais bonita, tenta pegar a mosca, mas ela foge, seus olhos batem então numa amêndoa no chão e a criança vira jogador de futebol, vai chutando a amêndoa, depois é uma vagem seca de flamboyant pedindo para ser chacoalhada, assim vai a criança à procura dos que mora em todos os caminhos, que é divertido andar, pena que a mãe não saiba andar por não ter os olhos que não sabem brincar, ela tem muita pressa, é preciso chegar, há coisas urgentes a fazer, seu pensamento está nas obrigações de dona de casa, por isso vai dando safanões nervosos na criança, se ela conseguisse ver e brincar com os brinquedos que moram no caminho, ela não precisaria fazer análise..."

Ao fechar nossos olhos para o que a vida quer nos mostrar, criamos uma prisão para nós mesmos, impedindo assim que percebamos a verdadeira beleza das coisas. Lembro-me do dia em que mamãe veio até mim, maravilhada, por ter descoberto que dentro de cada pedra de gelo do congelador se escondiam maravilhosas esculturas misteriosas.
Muitos se contentam em apenas existir e são raros os que escolhem viver.
Vamos, pois, com o nosso cotidiano, desvendar o mito da existência.



Pedro Lança Gomes

Curto-circuito

  Um olho. Outro olho. Talvez os dois...3:30! Talvez nenhum. Um silvo interrompe a noite. A noite dialoga com o silêncio. O silêncio se sente sozinho, e, timidamente, anuncia sua partida. O sol sorri, o relógio não. Banho. Café com livro pão com meia. Rua. Abraços, beijos recomendações...relógio. Relógio! Reta, reta, reta, reta, curva, relógio. Morro que desce, morro que sobe, viaduto, relógio. Rua que cruza, rua que roda, semáforo...faixa. Carros buzinas, passos pessoas. Conveniências. De repente, silêncio. Pés juntos e mãos estendidas. Cabeça cheia e barriga vazia. Olhos, negros. Negros como a própria penumbra, olhos como tristes lamentos. Pessoas. Buzinas, carros e passos. Chegada, relógio...relógio. Alívio. Sala. Amigos, abraços, sorrisos. Esperança. Lapiseira, borracha, caneta, livros. Cadeira quebrada, dor nas costas. Frio, fome, fim. Casa, almoço, conforto. Descanso...relógio! Livros, apostilas, cadernos, lapiseira, borracha, caneta. Dádiva do presente. Entardecer, noite, pausa. Jantar, família! Banheiro. Pia, vaso, chuveiro. Quarto, cama, foto. Saudades. Telefone, meu amor. Sono, relógio...Relógio! Despedidas, carinhos, trivialidades. Inspiração. Música, violão. Samba-canção. Travesseiro, sonho. Imensidão.
  Um olhar.




Pedro Lança Gomes